Entrevista: Em escola vizinha à Rocinha, poesia combate desesperança

Publicado originalmente em

O Globo

“Quero brotar em Pasárgada, lá eu posso acordar/Ir tranquilo para a escola sem medo de um tiro tomar”, escreveu Rafael Barroso, aluno da Escola Estadual André Maurois, na Gávea. E prossegue: “Lá eu posso ser negro em paz/E com bandido ser comparado? Jamais!”. Para ele e seus colegas de colégio, a Pasárgada, paraíso inatingível eternizado na poesia de Manuel Bandeira, é apenas um lugar a salvo de balas perdidas. Ser “amigo do Rei” nem é tão importante. Rafael batizou seu poema de “Liberdade”. A poesia está publicada — com mais 45 criações de outros alunos do colégio — num livro lançado esta semana, durante o festival literário da escola. Enquanto esses jovens de 15 a 18 anos do ensino médio criavam rimas para as suas obras, a Rocinha, onde a maior parte deles mora, vivia uma guerra entre facções que chegou a suspender as aulas da escola por mais de duas semanas. Uma violência que não tem fim. Por isso, os professores não têm dúvida: embora singelo, o livro é, mais do que uma demonstração de criatividade, um ato de resistência.

Há poemas sobre amores, os dilemas de ser jovem, as belezas das praias do Rio. Mas boa parte deles passa pela dor de estar numa rotina violenta. Ao menos 17 textos tratam deste assunto e da falta de perspectivas dentro da sociedade. “Os tiros vão para todo lado/Os moradores não saem mais de casa/E a cidade?/PARA!”, é o apelo em forma de estrofe que o aluno Pedro da Silva faz. “Em meio à violência/Permaneci/O que resta é só saudade/Dos dias de paz que vivi”, desabafa, por sua vez, outra estudante, Ana Beatriz da Silva.

— Este ano, o tema proposto foi o jovem e a cidade — conta Cintia Barreto, professora do colégio, organizadora e curadora da Festa Literária da André Maurois (FLAM) e também do livro de poesias. — Infelizmente, nossos jovens têm sofrido com esses problemas sociais, com a violência urbana. A gente queria escutar essa voz, saber de que forma eles estavam processando essa cidade.

A escola respira cultura. Logo na entrada, por exemplo, alunos montaram um retrato de Martin Luther King Jr. só com peças de dominó. Mas, por um tempo, essa efervescência ficou suspensa. Após esse hiato de duas semanas sem aulas por causa da violência, Cintia notou os jovens mais cabisbaixos. Agora, para ela, a hora é de mostrar que há talentos e potenciais a serem revelados na Rocinha, no Vidigal e em tantas outras favelas onde moram os alunos do colégio:

— Essa festa de hoje (ontem) é uma catarse. A gente sabe que o problema urbano não está resolvido. Mas queremos que eles vivenciem outras experiências, que transformem dor em arte.

Um dos autores dos poemas selecionados para o livro é Jean Alves, de 17 anos. Ele, que mora na Rocinha com a mãe, optou por escrever um texto sobre um tema feliz: o eu-lírico, que aproveita um dia de praia com a namorada. Animou-se a tal ponto que já pensa em cursar Letras:

 

— Sabia que muita gente já ia falar sobre violência. É algo com o qual sofremos, mas não temos culpa — diz ele, explicando sua escolha. — Quando a escola fechou, senti falta. Participo de todas as atividades extraclasses. Aqui, a gente conhece coisas que não conheceria.

Há alguns meses, uma aluna de 16 anos foi atingida por uma bala perdida em casa. Desde então, não tem ido à escola por causa do tratamento. A diretora Elizabeth Ramos, que mais parece uma faz-tudo dentro do colégio, garantiu à mãe da adolescente que a fará de tudo para a jovem não perder o ano letivo. Na linha de frente da Festa Literária, Elizabeth já doou uma coleção de livros para um ponto de leitura dentro do colégio e deu o dinheiro para pagar o Uber que levará a autora (e moradora da Rocinha) Fabiana Escobar, a Bibi Perigosa, ao evento hoje na escola.

— Para a gente, é um alento fechar o ano com essa prova de resistência. A gente acredita que a literatura pode mudar a realidade deles — afirma. — Era para ficarmos totalmente desanimados, mas a gente tem amor pela escola.

 

O festival de literatura é uma espécie de força-tarefa dos professores, estudantes e ex-alunos, que voltaram à escola para ajudar a organizar o evento. O livro escrito pelos jovens chama-se “Poetas da Maurois", uma referência ao nome da escola, batizada em homenagem ao escritor francês André Maurois. É dele a frase “O homem de ação é, antes de tudo, um poeta”.

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Cintia Barreto