Artigo: UMA ANÁLISE SEMIOLINGUÍSTICA DO DISCURSO EM QUASE DE VERDADE DE CLARICE LISPECTOR

Artigo de

Cintia Barreto


Considerada, por muitos críticos, escritora hermética, Clarice Lispector é dona de uma escrita singular que revoluciona a literatura de 45. Insere-se no mercado editorial, com uma escrita intimista e psicanalítica. Em 1944, aos 24 anos publica seu primeiro romance Perto do coração selvagem. Nascida na Ucrânia em 1920, veio para o Brasil ainda bebê. Este ano faz 30 anos de sua morte e estudá-la, nesse momento, é muito significativo pra mim.
Foi no movimento de expor o escondido, de demonstrar o que está por trás das estruturas visíveis e convidar o leitor ao diálogo e junto participar de suas elocubrações, que Clarice começa a escrever para o público infanto-juvenil. Escritora já consagrada, repete seu estilo adulto, considerando crianças e jovens capazes de percorrer seu texto de forma crítica e reflexiva. Como seguidora da visão de Lobato, Clarice está longe de considerar seu público infantilizado. Respeitando as limitações naturais dos primeiros leitores, ela ousa apresentar palavras diferentes daquelas encontradas geralmente em livros dessa natureza, instigando o leitor, co-autor, a pensar sobre seu fazer literário e suas escolhas lexicais.
Clarice possui um discurso subjetivo no qual é possível encontrar marcas de sua personalidade pessoal e artística. Os sujeitos do discurso são apresentados de tal forma que permitem inferir semelhanças entre a vida e a obra da autora. É interessante observar como a autora contribuiu para a literatura infanto-juvenil avançar em estilo e intenções, possibilitando a crianças e jovens expandir o potencial crítico-reflexivo e degustar, com mais prazer, a leitura de uma literatura genuinamente clariciana.
A obra de Clarice destinada a jovens e adultos é pequena, mas bastante significativa. Ela escreveu cinco livros desse gênero: O mistério do coelho pensante (1967), A mulher que matou os peixes (1968), A Vida íntima de Laura (1975), Quase de verdade (1978) e Como nasceram as estrelas (1987). Sendo este último, um livro de lendas que apresenta personagens do folclore brasileiro.
É importante ressaltar que mesmo no livro de lendas o estilo clariciano é o diferencial e singulariza a narração. A autora conta as histórias de forma horizontal, igualando-se aos leitores mirins, proporcionando uma conversa de sujeito para sujeito. Clarice desperta, com seus textos, a curiosidade, criatividade e criticidade de seus leitores. A infância, dessa forma, é vista como um momento empírico e investigativo.
Pautando-se nas considerações da análise do discurso, será estudada a narrativa de Quase de verdade. Assim, serão observados os sujeitos do discurso, o ethos, entre outros elementos textuais.
É importante ainda esclarecer que:

A Análise do Discurso não estaciona na interpretação, trabalha seus limites, seus mecanismos, como parte dos processos de significação. Também não procura um sentido verdadeiro através de uma "chave" de interpretação. Não há esta chave, há método, há construção de um dispositivo teórico. Não há uma verdade oculta atrás do texto. Há gestos de interpretação que constituem e que o analista, com seu dispositivo, deve ser capaz de compreender. (ORLANDI: 2003, p. 26)


São esses "gestos de interpretação" que serão aqui investigados.
À luz da pós-modernidade, faz-se mister observar ainda de que forma ocorre a desconstrução das estruturas textuais comuns a escritos direcionados aos primeiros leitores. Dessa forma, examinar o perfil do narrador clariciano, a construção dos personagens, bem como a fragmentação do texto é de suma relevância a esta análise discursiva.
No plano linguístico, é necessário investigar como Clarice constrói a linguagem. Isso porque essa registra sua identidade literária. O estilo clariciano dos textos destinados a adultos ressurge no espaço destinado a crianças. O pequeno leitor, assim, é imaginado como um ser pensante, capaz de compreender os interstícios do texto. Clarice fala a e sobre a vida numa linguagem acessível, mas que não subestima nem infantiliza o leitor. Ela brinca com as palavras e instiga o leitor à co-produção de sentidos, convidando-o a fazer inferências.
Nesse sentido, suas narrativas, a partir de questionamentos filosóficos, a autora promove um diálogo direto com leitor por meio de animais que protagonizam histórias e se antropomorfizam, possibilitando uma identificação simbólica entre crianças e personagens.
Pretende-se tornar visível a contribuição da autora para uma nova forma de perceber a escrita para um público tão diferenciado daquele para que costumava escrever. Para tanto, é urgente observar de que forma revisita a estrutura fabulesca, como inscreve um narrador inquieto e lança uma prosa fragmentada e recheada de incitações filosóficas e psicológicas. Uma coisa é certa: ninguém passa incólume pela leitura de Clarice Lispector seja ele criança, jovem ou adulto.
Quase de verdade (1978), publicado um ano depois de sua morte, sugere a relação entre o mundo ficcional e o mundo real, entre o dito e o não-dito. O discurso subjacente emerge à superfície do texto, iniciado pelo tradicional "Era uma vez..." expressão realizada geralmente por um narrador em terceira pessoa. Aqui se tem: "Era uma vez ... Era uma vez: eu!" (p. 5). Com essa declaração, a autora apresenta-nos um narrador em primeira pessoa que conta sua história.
No caso, esse "Eu" é o cão Ulisses. Não é por acaso que possui esse nome. Ulisses foi companheiro de Clarice em seu isolamento voluntário num apartamento no Leme. Como narrador diz: "Eu fico latindo para Clarice e ela — que entende o significado de meus latidos — escreve o que eu lhe conto". (p. 05). É notório que a Clarice de papel é a mesma do mundo real de mesma atividade da autora: é ela quem escreve. Inicia-se, dessa forma, a subjetividade do texto que possibilita inferências discursivas que aproximem a "mentira" (ficção) da "verdade" (realidade).
Ao voltarmos o olhar para os sujeitos que constroem a narrativa, tomamos emprestada a teoria do semiolinguista francês Patrick Charraudeu que divide o sujeito em quatro partes: Eu-comunicante (Euc), Eu-enunciador (Eue), Tu-interpretante(Tui) e Tu- destinatário (Tu-d). Entende-se por Euc o autor da obra, neste caso, Clarice Lispector, o Eue é o cachorro Ulisses, o Tui é o leitor distópico, real é aquele que consome a obra e o Tud é o leitor utópico, idealizado pelo autor aquele que ele pressupõe capaz de dominar o contrato de comunicação de sua obra.

Clarice evidencia esse Tu-destinatário, dizendo: "Pois não é que vou latir uma história que até parece de mentira e até parece de verdade? Só é verdade no mundo de quem gosta de inventar, como você e eu." (p. 07)
Seu leitor ideal, o Tud, tem de ser ainda criativo como ela mesma afirma:
— Está ouvindo agora mesmo um passarinho cantando? Se não está, faz-de-conta que está. (...) Para ajudar você a inventar a sua pequena cantiga, vou lhe dizer como ele canta. Canta assim: pirilim-pim-pim, pirilim-pim-pim, pirilim-pim-pim. Esse é um pássaro de alegria. (p. 8)

Percebe-se ainda que apesar de a história infantil prever uma comunicação monolocutiva, escrita e não-presencial, Clarice simula a interlocução por meio de elementos da expressão oral, desmonotizando a história e permitindo uma quase-presença tanto do narrador quanto do leitor na cena de narração. Assim sendo, promove a correlação entre o dia-a-dia da criança e o mundo mágico da leitura.
No plano linguístico, é válido observar a ocorrência de onomatopeias, recurso utilizado também em sua obra para adultos. No primeiro capítulo, intitulado "O Pai", em Perto do coração selvagem, a autora utiliza-se da mesma técnica:

A máquina do papai batia tac-tac... tac-tac-tac...O relógio acordou em tin-dlen sem poeira. O silêncio arrastou-se zzzzzz. O guarda-roupa dizia o quê? Roupa-roupa-roupa.
(LISPECTOR: 1990, P. 19)

Além de aproximar sua escrita do pensamento da criança a partir de analogias, Clarice brinca com as palavras e promove neologismos:
Os homens homenzavam, as mulheres mulherizavam, os meninos e meninas meninizavam, os ventos ventavam, a chuva chuvava, as galinhas galinhavam, os galos galavam, a figueira figueirava, os ovos ovavam.
(...)
Paciência, a história vai historijar.
(LISPECTOR: 1999, P. 14)

Lançando um olhar sobre a pós-modernidade no texto de Clarice, percebe-se a quebra da dicotomia bruxa/fada. Sendo a primeira o arquétipo do "mal" e a segunda o do "bem". Em quase de verdade, a autora apresenta bruxas do bem e do mal, apontando um papel dual a quem recebeu da tradição dos contos de fadas a tarefa de servir sempre a forças negativas.
Ela nos mostra Oxelia: "A bruxa má se chamava Oxelia (...) era tão ruim que era nuvem que nem chover chovia." (p. 17) e Oxalá "uma bruxa muito da boa (...) Ela era mágica." (p. 27). Essa humanização do sujeito bruxa, insere Clarice no rol das escritoras pós-modernas, capaz de dessacralizar estruturas ditas permanentes.
Como diz Pêcheux, "não há discurso sem sujeito e não há sujeito sem ideologia: o indivíduo é interpelado em sujeito pela ideologia e é assim que a língua faz sentido." (PÊCHEUX in ORLANDI: 2003, p. 17). A partir desse pensamento, podemos observar que por meio da história de Quase de verdade o Euc promove a reflexão a respeito de valores morais como a inveja, a vingança e o perdão.
No fim da narrativa, como acontece em outros textos lispectorianos, a autora insere um questionamento sobre a ingestão de jabuticabas pelas aves: "— Até logo, criança! Engole-se ou se engole o caroço?/ Eis a questão." (p. 30). Promove, nesse momento, o senso investigativo do leitor. Tal recurso já havia sido utilizado em seu primeiro livro infantil O mistério do coelho pensante no fim década de 60:

Se você quiser adivinhar o mistério, Paulinho, experimente você mesmo franzir o nariz para ver se dá certo. É capaz de você descobrir a solução, porque menino e menina entendem mais de coelho do que pai e mãe. Quando você descobrir, você me conta. Eu é que não vou mais franzir meu nariz, porque já estou cansada, meu bem, de só comer cenoura. (LISPECTOR: 1978, p. 50)

Algumas características de Quase de verdade

- Subjetividade da linguagem (elementos de sua vida real ficcionalizados)
- Quebra de paradigmas (bruxa má/bruxa boa – narrador)
- Universo fabulesco
- Brincadeira com as palavras (onomatopeia, neologismo, etimologia)
- Diálogo com o leitor (estabelecendo o contrato)
- Fluxo de consciência
- Convite à criticidade e à criatividade
- Discurso político-filosófico (senso coletivo – valores discutidos: inveja e perdão)
- Realidade + Fantasia (personagens humanos e antropomorfizados)

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

COELHO, Nelly Novaes. Dicionário crítico de escritoras brasileiras. São Paulo: Escrituras Editora, 2002.
LISPECTOR, Clarice. Quase de verdade. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.
______. Perto do coração selvagem. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1990.
______. O mistério do coelho pensante. Rio de Janeiro: Rocco, 1978.
OLIVEIRA, Ieda. O contrato de comunicação da Literatura Infantil e Juvenil. Rio de Janeiro: Lucerna, 2003.
ORLANDI, Eni Puccinelli. Análise do discurso: princípios e procedimentos. Campinas, SP: Pontes, 2003.
SANTOS, Jair Ferreira dos. O que é pós-modernismo. São Paulo: Brasiliense, 2000.

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Cintia Barreto