Artigo: O Negro E A Cultura Afro-Brasileira Em O Presente De Ossanha De Joel Rufino Dos Santos

Publicado originalmente em

Revista AÚ 2 - Novo Degase (2017)

 

A literatura para crianças sofreu uma série de alterações ao longo dos tempos. Nos fins do século XIX e início do século XX, era esta destinada ainda a fins didáticos e moralizantes e as escolas reuniam contos e poemas em tons patrióticos e pedagogizantes. Cabia à criança, por meio dos textos literários, compreender a regras estabelecidas pela sociedade da época. Destinava-se muito pouco, ou quase, nada de autonomia e criatividade aos pequenos.

Após as obras de Monteiro Lobato, a partir de 1920, este cenário começa a mudar e a criança não é mais vista como um ser passivo. Na literatura lobatiana, a criança é um ser ativo, autônomo e produtor de cultura. Lobato apresenta novas formas de escrever para o público infantil, que não deve ser confundido com infantilizado. Mistura em suas obras realidade e fantasia e retoma personagens folclóricos, misturando literatura erudita à popular. Assim também podemos perceber a literatura de Joel Rufino dos Santos.

A literatura para crianças e jovens de Joel Rufino dos Santos surge na década de 1970, na Revista Recreio, com o conto “Marinho, o Marinheiro” (1972). A narrativa fez parte de um dos discos da série “TABA” – Histórias e Músicas Brasileiras. Nesta obra,  já podemos perceber do que se trataria a escrita rufiniana, uma vez que traz a história de um marinheiro que um dia resolveu usar na cabeça um pássaro, pintassilgo, no lugar de seu boné. Contrariando as regras, Marinho propõe a liberdade de expressão.

De lá para cá, conceitos como “liberdade” e “identidade” foram constantes em suas narrativas, assim como a presença de mitos africanos. Carregadas de oralidade, estas histórias contribuem com a aproximação da cultura e costumes de povos africanos. Em diferentes obras, Joel Rufino acrescenta fatos históricos à sua ficção seja ambientando a trama num determinado período marcante da História, como o da Escravidão, seja trazendo como protagonistas personalidades importantes, mas esquecidas pelos livros didáticos. O compromisso do escritor e historiador é imbricar, muitas vezes, Literatura e História e conduzir o leitor a conhecer e refletir sobre certos acontecimentos que foram, durante muitos anos, alijados da História.

O presente de Ossanha (2006) retoma o período colonial da escravidão no Brasil e apresenta como protagonista uma criança escrava que foi comprada para brincar com o filho do dono de um engenho de açúcar, o menino Ricardo, nomeado na narrativa, ao contrário do protagonista que é chamado de “Moleque” apenas “porque tinham esquecido o seu nome” (OPO, 2006, p.3).

Isso posto, percebe-se, já no início da história, que, apesar de ser o escravo “coisificado”, é entorno dele que toda a trama acontece. Joel Rufino cumpre seu objetivo de dar visibilidade aos “esquecidos da história”.  O ponto de vista rufiniano subverte a ordem das narrativas clássicas que secundarizam o negro, o escravo. Opostamente, Rufino o particulariza, mesmo apresentando os fatos tais quais surgiram no período histórico que se propôs descrever.

Inspirado em um conto de José Lins do Rego Joel Rufino imprime sua marca transpondo, intertextualizando e apresentando um conto original que leva o leitor a pensar sobre comportamentos do período colonial. Valores como “amizade” e “liberdade” são trazidos à reflexão. O autor contextualiza a história no período da escravidão e não se esquiva de mostrar exatamente como funcionava o sistema. Em seu livro A escravidão no Brasil (2013), Joel, como historiador, define este sistema cruel que prevaleceu durante anos como relação de trabalho:

A escravidão, para começar, foi um mecanismo de tortura sistemático. Os patrões (senhores) eram proprietários do corpo dos trabalhadores (escravos). Para fazer render esse corpo, como uma máquina ou um boi, valia tudo, a começar pela tortura – que era legalizada e, mesmo quando não utilizada, pairava no ar como ameaça. (SANTOS, 2013, p. 15).

 

Em O presente de Ossanha, o autor apresenta à criança a historiografia do Brasil do Império e mostra como eram as relações de trabalho no Engenho. Ricardo, filho do Dono, afeiçoa-se ao Moleque e ambos, a revelia destas relações impostas, estabelecem uma verdadeira relação de amizade: “— Esse moleque foi a melhor compra que eu já fiz, mulher! Olha nosso filho, como está feliz.” (OPO, 2006, p. 5).

Além da contextualização histórica brasileira, a cultura africana é inserida na narrativa por meio de elementos da religiosidade e da mitologia. Em seu dia de folga o menino escravo foi ao mato para pegar passarinho e encontrou Ossanha: “Usava um cocar e um saiote de penas, mas não era índio. Sua pele era negra, quase azul. Não tinha uma perna e não tinha um olho, perdidos numa briga com Xangô.” (OPO, 2006, p. 7). Após esta aparição, o narrador, em terceira pessoa, apresenta a lenda de Ossanha, o guardião da floresta: “No começo de tudo, o criador, que se chama Olorum, tinha dado a cada filho uma parte do mundo. Para Ossanha deu a floresta: Você cuida das plantas...” (OPO, 2006, p.7). Outros elementos da cultura africana são citados como “Xangô” e “Iansã”. A partir disso, Joel leva ao conhecimento do leitor mirim os valores dos povos africanos, ampliando o repertório cultural.

O título da obra surge no momento em que Orixá auxilia o Moleque na captura de um pássaro Cora, de canto raro. O “presente de Ossanha” é, assim, o pássaro encantado que atraiu o interesse de todos. O Moleque poderia comprar sua liberdade se quisesse vendê-lo, mas não queria vender seu presente. No entanto, a condição de escravo levou seu “Dono” a ameaçá-lo: “Se não me vender essa porcaria, te aplico os anjinhos. Anjinhos eram uns aneizinhos de ferro para apertar os dedos. Doía como o diabo.” (OPO, 2006, p. 12).

Mais uma vez subvertendo a ordem cristalizada por uma sociedade escravagista, o autor escreve a fala mais comovente da narrativa: “— Não vende, pai. Há tempos que o escravo sou eu. Eu é que dependo dele pra tudo. Não sei brincar sozinho.” (OPO, 2006, p.12). Ao humanizar a relação entre as crianças (branca e negra, escrava), o autor propõe um outro olhar sobre a realidade vigente na época retratada. As relações humanas se tornam mais evidentes do que as de poder enfaticamente retratadas nos livros tradicionais de História. Joel lança uma lupa por meio da literatura para estas relações serem pensadas e repensadas hoje.

Ainda em seu livro de ensaio sobre escravidão Joel Rufino afirma: “A literatura é o caminho mais eficaz para se chegar ao miolo da escravidão, aí onde ela aparecerá como forma, ou padrão, de relações afetivas – afetivas no sentido genérico, incluindo o ódio – entre iguais e desiguais.” (SANTOS, 2013, p. 130).  Acrescenta ainda: “A literatura de ficção trata, basicamente, do que é universal no homem, suas relações de família e parentesco — amores, ódios, invejas, rivalidades, crueldades e bondades.” (SANTOS, 2013, p. 130). 

Apesar do apelo de Ricardo, seu pai vende o Moleque. O filho do dono de engenho ainda pensa que o Moleque iria alegre “pois tem o cora. Eu fico triste, porque não tenho nada.” (OPO, 2006, p. 12). A constatação de Ricardo subverte as expectativas das relações da sociedade patriarcal. O autor evidencia, por meio do pensamento de Ricardo, que o que importa, de verdade, na vida não é o que se tem, mas o que se sente. A criança branca sente-se infeliz por não ter nem a amizade da criança negra, nem nada que fosse dela como tinha o menino negro o seu pássaro. Os valores sociais e afetivos são colocados em xeque por Joel Rufino, fazendo a criança leitora pensar o que realmente tem valor em suas vidas.

A narrativa rufiniana termina com uma grande lição de valor humanista, o da amizade: “No outro dia de manhã, quando se levantou e abriu a janela, o menino Ricardo teve uma surpresa. Do lado de fora tinha uma gaiola pendurada. Assim que viu o menino, o cora começou a cantar.” (OPO, 2006, p. 14). Este momento epifânico revela a reciprocidade da amizade. Apesar de não ter voz ao final da narrativa, é por meio do gesto, da doação, do “presente de Ossanha”, que o menino negro tem seus sentimentos revelados. Nesta história, enfatiza-se que mais importante do que a sua própria liberdade o que o Moleque tinha de mais valor era a amizade.

Por fim, com esta história, é possível vivenciar a trajetória do negro no período colonial, mas passando por dentro de seus sentimentos, afetos, valores, enxergando-o como sujeito e não como objeto. É possível ainda conhecer a cultura afro-brasileira de forma poética, humanista. Com a leitura de Joel Rufino dos Santos, sentimo-nos convocados a também fazer algo para mudar o ângulo das lentes sociais e históricas em relação à presença do negro e de sua cultura. Após esta narrativa, somos chamados a ouvir ao fundo a voz do grande mestre e escritor Joel Rufino a nos dizer: “a Literatura torna-nos mais humanos”.

 

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Cintia Barreto